Sunday, December 31, 2006

Feliz 2007!

Amigos deste despretensioso blog,

Aproveito este último dia do ano para agradecer pela companhia ao longo deste 2006. Como a estréia do blog foi no início de 2006, tivemos praticamente um ano inteiro de convivência. É puro prazer e diletantismo escrever e debater neste blog, para todos aqui, o que me leva a concluir que há mais gente como eu, interessada em troca de experiências e conversas sem vínculo profissional ou caráter financeiro de qualquer natureza. E isso é muito alentador para mim.

Na terça, dia 2, volto com o relato da São Silvestre, agradecendo desde já pelo entusiasmo e pelas manifestações de boa sorte. Prometo contar tudo depois.

Desejo um excelente 2007 para todos e espero continuar com a companhia de vocês.

Por fim, encerro as postagens de 2006 com uma homenagem à aniversariante do dia, Rita Lee, 59 anos hoje.

Thursday, December 28, 2006

A segunda morte do LP




Era começo de 1985 e eu estava ouvindo o “Programa do Zuza”, pela rádio Jovem Pan AM. O crítico musical, pesquisador, jornalista e escritor Zuza Homem de Mello é uma figura fundamental na minha vida e um dia ainda volto a esse tema. Às quartas-feiras, Zuza transformava o programa em um “Dia do Ouvinte”, respondendo cartas e tocando músicas pedidas pela audiência. Naquele dia, Zuza comentou uma carta que abordava o tema do CD. Eu nunca tinha ouvido falar naquilo e me espantei com o prognóstico do apresentador, que estimava em mais cinco anos o período necessário para o CD superar o formato LP.

Na mosca. No começo da década de 90, o CD já dominava amplamente o mercado. Recebi aquela previsão do meu mestre Zuza com certa apreensão: eu já tinha uma considerável coleção de discos de vinil e não pensava em me apartar dela. Com o toque visionário dos aquarianos, ou com a inquietude típica dos ansiosos, localizei meu temor em algo aparentemente fútil – haverá toca-discos de vinil no futuro? Manterei meus LPs para sempre, mas terei onde ouvi-los?

Esta primeira morte do LP representou basicamente uma mudança de formato e de equipamentos necessários para escutar música. Trouxe vantagens, claro, como a menor fragilidade dos CDs em relação aos velhos bolachões, fora a redução de espaço necessário para armazená-los. Mas o cerne da questão – o ato de criação artística – permaneceu inalterado. Antes, o artista reunia repertório para gravar um LP e continuou fazendo o mesmo para gravar um CD.

O produto disco – LP ou CD – nasceu de uma sacada mercadológica, uma artimanha da indústria do disco para otimizar seus recursos. Antes do formato LP, o artista criava suas músicas sob o signo da inspiração, eventualmente respeitando a sazonalidade – músicas para o Carnaval, para as Festas Juninas, para o Natal – ou atendendo a pedidos de intérpretes. Os compositores de outrora não se preocupavam em criar um lote de 12, 13, 14 músicas para formar um LP. Não existia LP.

As gravadoras perceberam a vantagem de encapsular o trabalho do artista em um produto maior que os antigos compactos. É fácil entender: antes, cada vez que Carmen Miranda ou Orlando Silva entrava em um estúdio para gravar duas músicas, prensadas a toque de caixa e distribuídas em seguida, mobilizava-se uma estrutura relativamente grande, que incluía conjunto, orquestra, técnicos etc. Ao criar o formato LP, as gravadoras continuavam dispondo da mesma estrutura, mas para lançar no mercado, de uma só vez, um número bem maior de composições. E, claro, podiam cobrar bem mais por um produto com uma dúzia de músicas do que o faziam por um single.

As gerações de artistas que se sucederam, após o advento do LP, já chegaram ao mercado sob a concepção desse formato. O que não quer dizer que todos, sempre, tiveram facilidade em reunir um número mínimo de composições para formar um LP. Afinal, o processo de criação não é produção industrial, depende de inspiração e transpiração. Diante da exigência contratual de lançar um disco novo a cada ano, muitos bons artistas lançaram mão de regravar composições do passado ou de outros compositores, ou simplesmente de encaixar “qualquer coisa” para completar lado A e lado B de seus bolachões.

Essa dinâmica mantém-se praticamente a mesma com o surgimento do CD. Não tem mais lado A ou lado B, mas continua a necessidade de se preencherem 12, 13, 14 músicas no disquinho. A grande ruptura desse modus operandi parece estar sendo estabelecida pelo ambiente musical virtual. O ato de baixar músicas da internet, trocar arquivos de mp3, “queimar” CDs apenas com as músicas preferidas reverte de uma vez por todas o formato encapsulado que as gravadoras venderam por mais de meio século. A música, criação única e com fim em si mesmo, ganha a liberdade de ser ela mesma, não a faixa 2 do disco tal. É, de certa forma, uma retomada do processo de divulgação pré-Segunda Guerra.

É, sem dúvida, uma terrível fonte de dor de cabeça para as gravadoras, que em breve já não terão na pirataria seu alvo preferencial de vilania. A internet e outros veículos, como o celular, estão institucionalizando o livre acesso à música e as gravadoras talvez estejam percebendo que perderam a grande oportunidade de mudar sua forma de ganhar dinheiro, quando esnobaram o ambiente virtual há alguns anos. Esse movimento paralelo talvez explique alguns fenômenos aparentemente contraditórios, como o que está acontecendo no Brasil atualmente, com registro de queda na venda de CDs, paralelo ao aumento da arrecadação de direitos autorais. Será que a indústria do disco perdeu mesmo o bonde da história?

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Em que pese o LP ter sido um produto vantajoso para as gravadoras, não se pode tirar o mérito de artistas que criaram sob esse formato. A música popular está repleta de intérpretes e compositores que souberam fazer de cada LP uma obra com conceito, personalidade, começo, meio e fim. The Beatles, por exemplo. Especialmente a partir de Rubber Soul, os LPs do grupo passaram a ser fortemente conceituais, concebidos a partir de uma temática ou de uma sonoridade muito próprias. Rubber Soul é diferente de Revolver, que é completamente diferente de Sgt. Peppers, que é absolutamente diferente do álbum branco, que não tem nada a ver com Abbey Road etc.

No Brasil, Elis Regina – especialmente em sua fase de parceria com César Camargo Mariano – produziu sob esse mesmo foco. Os dois concebiam cada LP de uma forma semelhante, no processo de criação. Partiam de um ou dois compositores (ou dupla de compositores) e tinham ali a espinha dorsal do disco. Completavam o repertório com obras que falavam a mesma língua dessa base, ou que a complementassem de algum modo. Gravavam todo o LP com a mesma formação de músicos, seguindo arranjos que se harmonizavam entre si, priorizando a mesma sonoridade. Ao fim, nascia um LP literalmente redondo, com uma cara própria, diferente do anterior e do seguinte. A concepção artística de Elis e César Mariano era completa. Disco e espetáculo eram praticamente uma única obra. “Falso Brilhante”, “Transversal do Tempo” e “Saudade do Brasil” são LPs nascidos a partir de shows. Em outras ocasiões, o LP produzido rendeu em seguida o espetáculo.



Ouvir, por exemplo, “Saudade do Brasil”, vinte e seis anos após sua criação, é absorver uma obra completa. Contexto: o Brasil da abertura, a esperança de dias melhores, o sonho do fim da ditadura militar. O show (e o disco) abre com um pout-pourri de sucessos de Elis nos anos 60 – tempos em que ela era representante de primeira linha de uma música engajada, politizada, pós-Bossa Nova. Não por acaso, essa introdução termina com os sugestivos versos de “Terra de Ninguém”: “(...) mas, o dia vai chegar, que o mundo vai saber, não se vive sem se dar/ quem trabalha é que tem direito de viver, pois a terra é de ninguém.” Dada a senha para se falar abertamente do país.

Todas as músicas do disco falam de um Brasil tenso, pronto e ansioso para viver sua liberdade. A sugestão nada velada de reforma agrária da introdução vai se espalhando pelas demais letras. Da aparentemente inofensiva “Agora tá” (Tunai e Sergio Natureza): “Já que ta aí, pela metade mas tá, melhor cuidar, pra peteca não cair(...)”. Da realista “O primeiro jornal” (Sueli Costa e Abel Silva): “(...) para que saias com alguma alegria bem normal/ que dure pelo menos até você comprar e ler/ o primeiro jornal.” Da debochada “Alô, alô marciano” (Rita Lee e Roberto de Carvalho): “A crise tá virando zona, Cada um por si, todo mundo na lona (...), A coisa tá ficando ruça, Muita patrulha, muita bagunça, o muro começou a pixar(...)”. Da melancólica “Maria Maria” (Milton Nascimento e Fernando Brant): “(...) uma gente que ri quando deve chorar e não vive, apenas agüenta.” Da auto-confessional “Aos nossos filhos” (Ivan Lins e Vitor Martins): “(...) perdoem por tantos perigos, perdoem a falta de amigos, os dias eram assim (...)”. Da seqüência violenta de “Onze fitas” (Fátima Guedes) e “Menino” (Milton e Brant, novamente). A primeira diz: “Por engano, vingança ou cortesia/ Tava lá morto e posto um desregrado(...)”. A segunda arremata: “Quem cala sobre teu corpo/ Consente na tua morte(...)”.

O disco/show vai se encaminhando para um final de esperança, criando um Brasil idílico e que acredita no futuro. Surgem as paisagens tropicais e hedonistas de “Marambaia”, carimba-se o passaporte de volta com “Sabiá” (Tom e Chico), reafirma-se o otimismo algo culpado de Gonzaguinha em “Mundo Novo, Vida Nova” e se reforça com “O que foi feito deverá”, com a inequívoca esperança renovada dos versos: “Falo por acreditar que é cobrando o que fomos/ Que nós iremos crescer/ Outros outubros virão/ Outras manhãs plenas de sol e de luz.” Termina com outra de Gonzaguinha, a francamente otimista "Redescobrir": "(...) entender que tudo é nosso, sempre esteve em nós, somos a semente, ato, mente e voz/ não tenha medo, meu menino povo, tudo principia na própria pessoa, vai como a criança que não teme o tempo(...)".

Lançado originalmente em dois LPs, “Saudade do Brasil” foi lançado em CD duplo reunindo toda a íntegra do show. Nos dias de hoje, é certamente possível baixar só algumas dessas músicas, pinçando-as ao gosto pessoal. O que não é ruim, viva a liberdade. Mas que esfacela uma obra íntegra, uma história, um conceito. Felizmente, a criação artística não se engessa nos formatos e, neste instante, os criadores do século 21 já estão aprendendo a lidar com as muitas possibilidades do ambiente virtual.

Monday, December 18, 2006

Mutante



Conheci Dinho Leme há cerca de quinze anos, quando eu trabalhava na editoria de Esporte da Folha de S. Paulo e ele era assessor de imprensa de alguns pilotos, entre eles, Rubens Barrichello. Assim que recebi os primeiros releases assinados por ele, perguntei a meu então editor, Flavio Gomes, se aquele Dinho Leme por acaso era o baterista dos Mutantes. “Ele mesmo, é irmão do Reginaldo.” Então conheci o Dinho pessoalmente, passei a cruzar com ele nas corridas, viramos chapas. Dinho trabalhava com Fátima Paiva, outra habitué dos autódromos. Uma noite, saímos para bater papo, eu, Luiz Alberto Pandini, então repórter do Jornal da Tarde, Dinho e Fátima, e só então, alguns meses depois de conhecê-lo, tive coragem de levar um vinil dos Mutantes para que ele autografasse. Era estranho fazer isso, não exatamente por constrangimento, mas porque eu não conseguia ver o Dinho como um Mutante, mas como um assessor de imprensa amigo, companheiro de pistas e salas de imprensa. “Mutantes e seus Cometas no País dos Baurets” ganhou a assinatura do baterista em uma das mesas do Ritz, barzinho bacana dos Jardins, em São Paulo. Ta lá na contracapa: “vinte anos depois, que barato”.

Trinta e cinco anos depois, um barato em meio. Dinho Leme está de volta aos Mutantes. Ou melhor, os Mutantes estão de volta. Em um dos primeiros posts deste blog, saudei a volta dos Mutantes às prateleiras, com seus CDs originais remasterizados. Poucos meses depois, os “velhos” resolveram se juntar de verdade, reeditando a formação quase original, para um show em Londres. Dinho acumulou as funções de assessor de imprensa com as de artista pé na estrada. Depois da Inglaterra, os Estados Unidos. E eu na fila para vê-lo pessoalmente, depois de quase dois anos de nosso último encontro. E finalmente aconteceu na última quarta-feira, em um almoço de quatro horas e exatas quatro garrafas de vinho. Reeditamos o encontro do Ritz, desta vez no Café Journal e acrescido da companhia de outro querido amigo, o também jornalista Luiz Fernando Ramos, o Ico, que como eu não tem idade para ter visto os Mutantes originais, mas com a sorte de ter presenciado a volta histórica do grupo em Londres. No dia seguinte, comentei com o Ico como essa conversa com o Dinho Leme baterista dos Mutantes foi diferente de todas as que tive com ele antes. Ico registrou o mesmo estranhamento no show do Barbican. Não parecia o Dinho que a gente conhece, era outro. Em suma, um mutante.


Algumas passagens deste almoço recente estão relatadas a seguir. A conversa não foi gravada, mas Dinho entendeu meu interesse de amiga jornalista e me brindou com histórias e reminiscências. Foi um daqueles encontros inesquecíveis e justamente por misturar tantos fatos e emoções, não relato com o viés frio de repórter que só observa. Sente-se, encha o copo e deixe o som rolar.

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Não pergunte datas para Dinho Leme. É mais fácil que um fã saiba precisar a ordem dos discos gravados pelos Mutantes, os anos das apresentações nos festivais do que esperar do baterista do grupo qualquer exatidão do gênero. Isso costuma acontecer também com os atletas e tem uma explicação lógica: para o fã, aquela apresentação, aquele jogo xis é um marco histórico; para o artista, ou o atleta, é como um dia a mais de trabalho. Você não se lembra de todos os seus dias no escritório, lembra? Então, não se meta a achar que o artista tem de lembrar.

Mas ele é capaz de lembrar a gênese de seu interesse por música. O pai. Tocava uma gaita complicadíssima em Rancharia, interior de São Paulo, onde Dinho, nascido em Campo Grande, cresceu. Menino, Dinho ouvia o pai tirar standards consagrados pela orquestra de Glen Miller em sua gaita. E ouvia discos do mesmo estilo em casa. A influência do pai se manifestou no primeiro instrumento escolhido, um de sopro – trompete. “Eu comia goiaba verde para ajudar a calejar o lábio.” Os primeiros discos comprados por conta própria eram sucessos da parada. Um, em especial, foi mais marcante – Earl Grant.

A afinidade com a bateria começou, veja só, com a Bossa Nova. Bateria tocada com escovinha, logo despontando os primeiros ídolos – Rubinho, do Zimbo Trio, e o carioca Edison Machado. Um salto no tempo. Final dos anos 60, começo dos 70, sei lá, Dinho não se liga em datas, lembra? A Rede Globo convida bateristas de várias idades e estilos diferentes para um especial.

O baterista dos Mutantes chega para a gravação e dá de cara com Edison Machado. A emoção de tocar com o ídolo logo perdeu terreno para a preocupação. Edison não estava bem, parecia alterado, não tocou legal. Acabado o programa, cada um para um lado, e Edison lá, meio caído, meio esquecido, bem mal. Dinho colocou-o no carro, cruzou o Rio de Janeiro de algum ponto longínquo da Zona Oeste, local da gravação, até a casa do velho mestre, na Zona Sul. Literalmente, carregou-o até chegar ao apartamento, deixou-o deitado e foi embora, ainda duvidando que tinha levado nos ombros Edison Machado, seu ídolo.

Outro salto no tempo. Dinho e o pai, litoral norte de São Paulo. Um mercadinho para abastecer a casa da praia. O vendeiro vai embrulhando mercadorias com jornais velhos e Dinho se vê diante de uma notícia bruta, ali no balcão. Morre Edison Machado. “Voltei com meu pai para Paúba, ele ia falando no carro, não consegui prestar atenção. Só lembrava no Edison Machado morto, e do dia que carreguei o cara até sua casa.”

Mas então, peraí, como foi que um admirador de Bossa Nova se tornou baterista do grupo de rock mais famoso da história do Brasil? Ah, mas aí vieram os bailes, e os Beatles. Antes de vir para São Paulo, Dinho começou a tocar em bailes no interior, já devidamente acomodado no fundo do palco, porque a história do trompete, nem com muita goiaba verde, foi para frente. E em baile, a gente sabe, toca-se de tudo. Quando chegou à capital, Dinho já tinha larga experiência em um repertório variado, por isso acabou escalado para acompanhar Ronnie Von, o “príncipe” daqueles anos 60 da TV Record. A ponte foi direta e curta: Ronnie foi quem “inventou” o nome Mutantes, inspirado em um livro de ficção científica que estava lendo na época e que ele achou bem interessante para o trio formado pelos dois irmãos Batista e por Rita Lee. Dinho não foi imediatamente incorporado ao grupo, tanto que não tocou na histórica apresentação dos Mutantes junto com Gilberto Gil, no III Festival da Record, com “Domingo no Parque”. Logo depois, no entanto, virou um mutante.

A volta dos Mutantes, apesar de festejada pelo público e badalada pela mídia, tem criado situações complicadas para Dinho, Arnaldo e Sergio. Porque falar da volta dos Mutantes passa forçosamente pelo fim dos Mutantes, pela saída de Rita Lee do grupo, pelas feridas abertas por tudo isso. Passa pelas recentes declarações desagradáveis de Rita Lee em relação ao revival, e remonta às tentativas anteriores, que não deram certo. Uma delas, inclusive, capitaneada pela própria Rita, que um dia ligou para Dinho, ficou cinqüenta minutos no telefone falando do projeto, que não rolou.

Dinho não se recusa a falar do tema, mas diz que, mais de trinta anos depois, de fato não sabe bem o que aconteceu. Rita passou anos dizendo que tinha sido expulsa dos Mutantes. Os Mutantes sempre negaram. Até que um dia, no presente vivíssimo dessa volta, Arnaldo disse que falou mesmo para ela sair, pegando Dinho e Sergio no contrapé durante uma das muitas entrevistas concedidas na época do lançamento do DVD. “Acho que foi briga de marido e mulher, apimentada por executivo de gravadora que já queria lançar a Rita como artista solo, e porque o grupo, uma hora, ia mesmo acabar.”

Acabou e acabou mesmo para Dinho. Ele ainda tocou em algumas produções, começou a virar produtor de eventos, lançou um jornal sobre automobilismo, tornou-se assessor de imprensa e nunca, nunca, nunca mais tocou bateria. A filha Joana, de 25 anos, nunca tinha visto Dinho tocar. Na trepidante volta dos Mutantes, a Câmara dos Vereadores de São Paulo, por iniciativa do vereador Carlos Giannazi, do Psol, homenageou Arnaldo, Sergio e Dinho pela relevância artística e histórica do grupo. O público foi tanto que uma sala não bastou para acomodar a multidão de seguidores. Fãs de outrora reverenciavam o trio, devidamente engravatado para a ocasião solene, enquanto uma concentração expressiva de jovens se aglomerava para conhecer os gurus ao vivo.

Sergio, o maior porta-voz do grupo e, no fundo, o curador da obra dos Mutantes, diz e repete que foi a concordância de Dinho Leme a responsável pela volta do grupo. Nas primeiras conversas, ainda reticente, Dinho alegava o longo afastamento da música como razão para continuar distante. Mas Sergio insistiu e chamou Dinho para tocar em sua casa, na Granja Viana (grande São Paulo). Na primeira vez, Dinho foi, achou legal, mas não quis tocar. “Por quê?” Sei lá, nada a ver. Voltou lá algumas vezes e resolveu encarar. “Tudo bem, eu topo, mas não sei até onde vou, vamos ver.” Sergio literalmente diz: “Quando o Dinho topou, eu senti que os Mutantes tinham voltado.”

Dinho não sabe explicar porque desta vez deu certo, e não das outras. “Mágica, agora tinha que ser, algo assim.” O assessor de imprensa voltou a praticar bateria. Com fones de ouvido, gasta horas estudando os arranjos, reinventando o fraseado da bateria, reconstituindo algumas coisas, criando outras. A bateria está no escritório, o mesmo de onde atende seus clientes pilotos, faz a assessoria de imprensa da Fórmula Truck e onde funciona a redação do anuário AutoMotor, que ele edita com o irmão Reginaldo Leme.

Joana nunca tinha visto o pai tocar, viu no mesmo dia da homenagem na Câmara dos Vereadores. Seu filho Tiê, de dois anos, gostou do brinquedo novo do avô. Subiu no banquinho e desceu o braço, com um estilo heavy metal que ninguém sabe de onde veio. Genes adormecidos, talvez.

Sunday, December 10, 2006

A lata

Eu li a notícia hoje, cara. Um navio cargueiro foi interceptado pela Marinha Mercante do Rio. Estava cheio de bagulho no barco, velho, da melhor qualidade. Parece que era da Holanda. Dá pra acreditar? O mais incrível você ainda não sabe. Jogaram a mercadoria toda no mar, cara, tudo numas latas enormes. Pensou o que vai acontecer com isso? Já, eu já pensei, bicho. Se uma dessas latas vem parar aqui na praia...

Elvis se levantou, sacudiu o corpo inteiro, sacudiu o pêlo, abanou o rabo. Quando o cara começava a viajar desse jeito, falando com ele como se fosse gente, era sinal de que ia cair no sono. A praia de Paúba era quase selvagem nessa época, dava mesmo pra dormir legal. Elvis ficou por ali, meio de guarda, o cara embarcou. Teve o sonho recorrente de que voltara a tocar. Era engraçado, porque ele nunca pensava nisso acordado, fazia anos não via os caras, mas sempre sonhava com a bateria, com solos e tambores e pratos e o sonho terminava sempre igual, quando um dos caras, o irmão mais velho, lhe tomava as baquetas e furava o tambor da batera alugada.

Acordava dando risada. Que louco esse cara, que loucos todos nós. Mas naquele dia não chegou no tambor furado, acordou antes com os latidos do Elvis. O bicho estava quase no mar, latindo para alguma coisa que vinha boiando. Sentou, sacudiu a areia e o sono, focou os olhos. A coisa brilhava. Era metal. Um cilindro de metal. Era uma lata. A lata. Uma fé estranha o arrebatou. Não tinha sido à toa a notícia da manhã. Navio, Rio, Paúba, litoral norte. Ela tinha chegado até ele, era ela. Elvis tinha o pêlo molhado, parecia querer alcançá-la para ele. O cara levantou, tirou a camiseta, correu até a arrebentação, nadou em direção à lata. Quando estava a uma braçada da coisa, sentiu o hálito canino muito perto. Elvis roçou-lhe o pêlo e ele agora sim acordou. Um bode infernal, a cabeça pesando chumbo presa à areia. Custou a levantar e a acreditar. Só sonho, então.

Elvis o seguiu no passo lento. A cabeça começava a entrar no eixo de novo, sem perder o foco na lata. Era fim de tarde e a fé ainda o guiava. Foi até os barcos, conversa jogada fora com os pescadores de sempre. A bermuda amarrotada guardava uma nota, presente aos homens do mar. Se encontrarem alguma coisa parecida com o que eu falei... Promessa de ganho em dobro, redobraram a atenção.

Subiu a serra de volta, outra semana de selva cinza à espera das verdes ondas, céu azul e o prateado da lata. Os jornais davam seqüência da história, as latas se perdiam e se achavam em praias cada vez mais improváveis, e ele pensava se uma delas chegaria lá. O mundo da velocidade era seu dia, pilotos, corridas, notícias para a imprensa, mas à noite ele se transmutava, se teletransportava para a orla, deixava de ser urbano, mutante virado em caiçara, pensava no mar. A sexta-feira chegou e ele chegou a acreditar que os olhos de Elvis lhe diziam algo. Não tinha sol, talvez nem descesse. Elvis engoliu um latido triste. Desceu.

Sim, Elvis tinha razão, os homens do mar encontraram. A lata. Era a mais exemplar, pura, eficaz e perfumada porção de nirvana que ele já tinha provado com todos os seus sentidos. Naqueles dias, teve até vontade de ligar para os caras, aquilo valia um revival. Nem tinha como. O mais novo vivia num sítio, o mais velho, parece, estava em Minas, a mina, essa não estava nem aí. Desculpe, babe, essa lata eu vou guardar. Candidamente, acomodou-a numa mala de viagem e lá ela ficou por meses, sendo sorvida aos poucos, iguaria fina e rara.

A velocidade o levou para bem longe de Paúba, mares do norte, céus mediterrâneos. Com ele, um jovem e loiro piloto, acompanhado do pai. E a mala. Vida de assessor de imprensa tem dessas coisas. O menino tinha talento mesmo, um bom patrocinador, fazia sua estréia nas pistas da Europa, depois de uma carreira fulminante de sucessos por aqui. Tinha que ter assessor de imprensa, e lá estava o cara, com a mala que antes abrigara a lata. Na Itália, aeroporto, alfândega, passaporte, visto, bagagem, perguntas de praxe, o menino tinha nome italiano, oriundi, capice? Tudo certo com os papéis, nada de errado com os nomes, só não se entende esse pastor alemão, policial canino farejando sofregamente a bagagem. Não toda a bagagem. A mala, aquela mala. Pai e piloto impacientes. O que há com essa mala? Esvazia a mala, nada de errado com ela. Não há nada de podre na mala. Não há nem nunca houve. Houve uma vez, não podre. Fina iguaria. Uma lata. A lata.

Monday, December 04, 2006

Com que roupa?

Amigos, a hora se aproxima. No dia 31 de dezembro, vou correr minha primeira São Silvestre. Já corri dezenas de provas, mas nunca a mais tradicional da minha cidade. Quase sempre, viajava no final do ano. Desta vez, deu certo, estarei na capital paulista na virada do ano e já estou inscrita. É uma prova difícil, cheia de gente, um calor do Saara, um suplício no centro abafado da cidade, um terror na subida da Brigadeiro, mas vou. Muita gente que faz a São Silvestre não se anima a fazer a segunda. É tipo "once in a lifetime", aquelas coisas que a gente faz uma vez na vida.

Por tudo o que essa prova representa, quero corrê-la usando uma camiseta com alguma inscrição significativa. Estou abrindo a caixa de comentários para sugestões. Quem se habilita?

Em tempo: sem palavrões e termos ofensivos, certo?