Friday, July 07, 2017

Poesia sem fim: a arte catártica de Jodorowsky

Vida passada a limpo pelo crivo da arte
“Na velhice, você se desprende de tudo. ” Surgindo como uma espécie de consciência de si mesmo no autobiográfico “Poesia sem fim”, o diretor chileno Alejandro Jodorowsky, aos 88 anos, verbaliza ao final de seu mais recente longa algo que vai se tornando claro ao espectador durante os 128 minutos de filme. Aquele é um exercício catártico, de um homem apaziguado com seus dramas familiares, mas de um artista inquieto, em que pese a idade.

O conselho de desprendimento para o jovem artista, vivido por Adam Jodorowsky (filho do diretor), parece seguido à risca na concepção do filme. O velho diretor desprende-se inclusive do simulacro que habitualmente cerca a obra de arte e, logo no início, Jodorowsky menino surge ao lado dos pais em um bairro que não se pretende outra coisa que não cenário. O recurso vai se repetir muitas vezes durante o filme, com homens vestidos de preto compondo ou desconstruindo ambientes, sem cerimônia.

O jovem Alejandro (Jeremias Herkovits) e o diretor, enquanto consciência
Como em seu longa anterior, “A Dança da Realidade”, primeira parte dessa jornada autobiográfica, os pais do artista surgem em representações alegóricas. O pai, vivido por outro filho do diretor, Brontis Jodorowsky, é um tirano de inclinações nazistas, que oprime inclemente a vocação artística do garoto. A mãe, uma iídiche mama típica, vivida pela extraordinária Pamela Flores, canta dramaticamente todas as suas falas, como se estivesse em uma ópera eterna. Já no início do filme, um elemento visual importante surge na tela: bicicletas, e elas voltarão à história em momentos cruciais da narrativa.

A ruptura do jovem Alejandro com a família não poderia ser mais literal. Ao ceifar a árvore no quintal da avó, ele se desprende de sua genealogia e assume o risco de ser artista, abraçando uma vida que será, em tudo, diferente da rotina familiar. A paleta de cores do filme acompanha a mudança. Saem o marrom, o ocre e o vermelho envelhecido da casa paterna para explodirem as cores vivas dos artistas e das obras que passam a circundar Alejandro.

A presença dramática da mãe permanecerá relevante, transformada na colossal mulher que se apresenta como a primeira relação amorosa de Alejandro. Freud explica. E continuará explicando com a presença de espelhos que se multiplicam na história, como no personagem Enrique Lihn (Leandro Taub), quase um duplo do jovem poeta.

O espelho: presença recorrente em "Poesia sem fim"

Com fotografia de Christopher Doyle, “Poesia sem fim” não se pretende nunca naturalista. Se esta é uma história de vida passada a limpo, ela chega pelo crivo da arte, como se saída mesmo da mente do artista, em cores por vezes fortes e contrastantes, em outras, opacas e minimalistas. Os cenários e as situações são surreais, os diálogos, muito mais idealizados do que realistas. Cercado de uma trupe de artistas, de novo Alejandro se vê cercado de bicicletas, como no cabide da casa de Enrique Lihn ou no passeio que leva o grupo de volta ao bairro da infância do poeta.

O rescaldo da antiga residência revela objetos e lembranças dos tempos da opressão paterna e da presença ostensiva da mãe. Entre eles, de novo, a bicicleta, agora queimada, como símbolo da ruptura definitiva, um “rosebud” às avessas. A cinta da mãe, presa a balões que a elevam para a liberdade do céu, surge como homenagem àquela figura trágica que talvez tenha sido tão ou mais vítima do jugo paterno que o jovem Alejandro. O ambiente do país, entregue a um salvador da pátria fascista, típico das Américas, ancorado na perene luta contra a corrupção, oferece o argumento definitivo para a partida do poeta.


Alejandro segue para a Europa, não sem antes confrontar-se novamente com o pai, lutando literalmente com o velho tirano, depois de quebrar... um espelho. Filme ou psicanálise? Freud na veia, de novo. “Ao não me dar nada, você me deu tudo”, diz o filho já envelhecido para o pai, em uma conciliação só possível pela arte. Poesia pura, “Poesia sem fim”.

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