Sunday, September 03, 2017

Bingo e a memória afetiva dos anos 1980


Eu assistiria "Bingo, o rei das manhãs" mais algumas vezes nem que fosse apenas pela magnífica cena em plano sequência, no primeiro ato do filme. Nela, o protagonista interpretado por Vladimir Brichta caminha por um corredor, acessa um estúdio, adentra o cenário e tem conversas intercaladas com outros dois personagens. Simples, adequada, sem loopings mirabolantes de câmeras, a sequência funciona como uma espécie de marca registrada do diretor, Daniel Rezende.

Marca registrada? Em um primeiro longa metragem? Espera. Lembra de "Cidade de Deus"? A cena da galinha? A famosa cena da galinha? O que une as duas obras? Ele mesmo, Daniel Rezende, responsável pela montagem de "Cidade de Deus" e de uma extensa filmografia que inclui "Narradores de Javé", "Diários de Motocicleta", "Ensaio sobre a Cegueira", "A Árvore da Vida", entre outros. O domínio da ação e dos movimentos de câmera é evidente em "Bingo, o rei das manhãs", mas está longe de ser sua única virtude.

O roteiro retrata o ator Augusto Mendes (baseado no verídico Arlindo Barreto, vivido por Brichta), o primeiro palhaço Bozo do programa infantil levado ao ar pelo SBT, nos anos 1980. Filho da também atriz Márcia de Windsor (Márcia Mendes, na trama, interpretada por Ana Lúcia Torre), Barreto mantinha uma pouco notável carreira de ator antes de ser escolhido para viver o palhaço no programa infantil, reprodução local de uma franquia de entretenimento norte-americana. Subvertendo alguns padrões originais, o programa alcançou a liderança da audiência no período da manhã e catapultou Barreto a uma fama "de mentira", já que, por contrato, sua identidade não podia ser revelada.

"Bingo" é estruturado de forma clássica, em três atos distintos - a frustração do início da carreira, a fama (somada à trinca álcool, sexo e drogas) e o desfecho unindo decadência e redenção. Com roteiro de Luiz Bolognesi, o filme mescla diálogos ágeis e eventualmente cômicos (especialmente pelo contexto) a cenas de grande peso dramático, e a alta saturação de imagens nesses momentos, somada a uma trilha sonora excessivamente tensa, talvez seja o único deslize do filme.

Já que se trata de um filme sobre televisão, Rezende brinca com a textura das imagens de forma admirável ao longo das quase duas horas de projeção. A imagem límpida captada no estúdio transforma-se na visão granulada dos antigos aparelhos de TV "de tubo", reforçando a dubiedade daquele personagem que se torna uma celebridade, paradoxalmente escondida em uma identidade secreta.

Para as gerações que cresceram nos anos 1980, "Bingo" é pura memória afetiva: o Opala laranja 4.1 do protagonista, os cabelos repicados no estilo Farah Fawcett, as fitas cassete BASF, a secretária eletrônica, o despacho da Censura que antecedia cada programa de TV, usado aqui para apresentar o filme, no breve crédito de abertura. Méritos para a direção de arte, a cargo de Cassio Amarante, e para o figurino, de Verônica Julian. E, aumentando a sensação de nostalgia dos anos 1980, "Bingo" ainda aposta em uma trilha sonora que mistura Titãs, Echo and the Bunnymen, Gretchen, Metrô, David Bowie, entre outros.

Se o obscuro Augusto Mendes rapidamente se torna alvo de simpatia do espectador, grande parte do mérito deve-se a Vladimir Brichta, que consegue imprimir no personagem doses generosas de fragilidade, ironia, malícia, astúcia e afeto. E faz isso de forma alternada, com e sem a espessa pintura de palhaço que o transforma em "Bingo". Graças a isso, em um momento é possível ver um ator de cara limpa assumindo expressões histriônicas, como se estivesse no picadeiro, e, em outro, um palhaço entregando toda tristeza no olhar de quem acabou de arruinar o dia do próprio filho.

Melancólico em seu ato final, "Bingo" ainda brinda o espectador com mais uma sequência longa, francamente inspirada em "Birdman", de Alejandro Iñárritu, retratando a decadência e a redenção do personagem, em um desfecho que pode soar moralizante. No entanto, a habilidade do roteirista, em traçar um paralelo entre arte e religião, revela-se como a solução sagaz para contar o fato, sem deixar de refletir sobre ele.

2 comments:

Ron Groo said...

Eu achei interessante que tudo teve nome mudado para não ter problemas judiciais. Nomes, marcas etc... Menos Gretchen. Esta continua Gretchen.

Anonymous said...

Não vi mas mando uma abertura que acho uma das mais lindas que assisti no cinema. Muito ensinamento para 4:14 min. Um pequeno filme dentro do filme.

https://www.youtube.com/watch?v=Cy0_DahnlWU

Quando a simplicidade é complexamente maravilhosa !


M.C.